terça-feira, 28 de abril de 2009

Parte III - Os Quadrinhos, as Histórias em Quadrinhos, Arte Seqüencial, Graphic Novels, Novelas Gráficas, Literatura de Imagem, a HQ e as HQs

Entendo que a indústria do cinema tem a necessidade de construir uma obra que consiga atingir e criar empatia com um público maior e não “versado” na linguagem das HQs, seja em termos de símbolos e ferramentas narrativas e até conceituais (como o exemplo de Superman e X-Men que citei.). Entendo o significado da palavra adaptação, e entendo que cinema é uma linguagem que, embora troque figurinhas com os quadrinhos, é diferente. Aceito e gosto de muitas dessas adaptações. Entendo também que as pessoas não são obrigadas a gostar ou entender o que é uma história em quadrinhos, e como todos estes conceitos gráficos, narrativos e estéticos, criados por tantos artistas, durante todos estes anos, são tão bacanas, interessantes e incríveis.

O que é estranho para mim (e agora chego aonde queria chegar desde o começo dessa Bíblia toda) é que boa parte do próprio público de quadrinhos também começou a ter problemas em aceitar as estéticas gráficas e conceituais desta mídia em suas adaptações... Quanto menos se usasse alguns dos elementos de narrativa dos quadrinhos, mais “realista” seriam, e isso seria bem mais legal para uma adaptação cinematográfica de quadrinhos!... E isso me deixou meio confuso... Até que ponto estas adaptações realistas estão influenciando os quadrinhos? E o que está acontecendo com o que existe de mais bacana na linguagem dos quadrinhos, nos próprios quadrinhos?

Como já disse, a tendência de tornar os super-heróis cada vez mais realistas, não veio exatamente dos cinemas... mas das próprias HQs.

É estranho perceber que algumas ferramentas de narrativa que só existem nesta mídia, e que a tornam tão particular, não estão mais sendo usadas em seu próprio meio...

Alguns poucos exemplos:

Os elementos gráficos de texto... os balões de pensamento, os elétricos e eletrônicos, os balões de grito, de sussurro... todos praticamente desapareceram. O uso de balões de pensamento foi abolido... foi substituído por recordatórios com narração em primeira pessoa. A princípio isso foi uma opção estética, de um material só (dizem que foi Frank Miller e seu Dark Knight Returns que começou isso). Mas os leitores e autores entenderam que o balão de pensamento era um elemento gráfico que “infantilizava” a linguagem. Estes elementos gráficos de texto foram criados por vários artistas, foram desenvolvidos com o tempo e com o entendimento da linguagem gráfica dos quadrinhos, e são um trabalho de design interessante. Felizmente temos obras como Arkhan Asylum (considerada adulta) que usam formatos de balões diferenciados, além de tipologias diferenciadas, para cada vilão da galeria do Batman, tentando traduzir graficamente a sensação de registro de voz de cada um destes personagens.

As alterações de formato de requadro... Observe as obras de Will Eisner em The Spirit, que todos consideram um gênio... veja como ele criava formas de quadros diferentes para representar um conceito, uma sensação, um sentimento diferente graficamente. Quadros em formato de poça d´água, de garrafa, de luneta, de cabine de trem, de sino... Requadros abertos, sangrados, conceituais... Hoje eles quase não são usados. Parece que o ideal é que o formato de quadro seja fixo, como uma tela de cinema, com a intenção de parecer mais cinematográfico... Assim, deixamos essa linguagem mais realista, menos infantilizada. Menos quadrinhos.

A calha como ferramenta de timing... Poucos são os artistas que ainda pensam nisso... De novo, a busca pelo realismo parece ter tornado esta ferramenta algo desimportante.

Talvez isso esteja acontecendo porque essa busca pelo realismo nos quadrinhos tem sido algo perseguido pelos próprios leitores e profissionais desta mídia... Talvez eles também tenham problemas em aceitar a estética dos quadrinhos em seu próprio meio. Talvez eles também achem (assim como o público geral que assiste às adaptações cinematográficas de obras de quadrinhos) que a estética, a linguagem e os conceitos das HQs sejam, no fundo, infantis. E que, para eles, como leitores e profissionais poderem sentir que curtem e trabalham em uma mídia séria, esta estética, esta linguagem e tudo mais devem dar uma desaparecida...

Às vezes penso em como o avanço da tecnologia de efeitos especiais estão levando a fantasia pra tela e em como o leitor de quadrinhos quer ver a estética, a linguagem vista nos filmes, nos próprios quadrinhos, e como isso pode estar mudando um pouco a percepção gráfica dos leitores de HQs... Ao que parece, eles estão perdendo aos poucos a capacidade de uma interpretação gráfica de realidade, dada por um conjunto de sistemas de linguagem únicos que definem os quadrinhos como mídia e como linguagem.

Um triste sinal disso é que já há tempos tenho escutado alguns fãs de quadrinhos justificando a qualidade desta linguagem, para os que não conhecem o maravilhoso mundo da linguagem das HQs, usando a frase “o legal dos quadrinhos é que é uma linguagem bem cinematográfica”... As HQs não são legais porque têm ligações com a linguagem cinematográfica... é legal porque possui um sistema de linguagem própria... única. O que mais vejo são fãs de quadrinhos revoltados porque gostariam que todos vissem como esta linguagem é legal... Mas acho engraçado ver estes mesmos fãs justificando a qualidade de uma mídia usando outra como referência e quase negando os elementos narrativos que definem e diferenciam a mídia que estão defendendo... - como se quadrinhos, por si só, não tivesse já sua qualidade -, e acusando alguns elementos gráficos definidores desta linguagem como infantilizadores.

O desuso de muitos dos elementos gráficos narrativos dos quadrinhos, nos próprios quadrinhos, trouxe frases preciosas como “Agora, sim, estão levando o Batman a sério!” e “É o Batman realista!”... Estão confundindo o fato de às vezes certas obras de quadrinhos, ao serem adaptadas para outras mídias, terem a necessidade de alteração de tratamentos narrativos por conta de um público diferente com o “fato” de que elementos gráficos de quadrinhos não podem mais aparecer na sua própria mídia porque dão um ar infantil a uma linguagem inteira.

Entendo que todas as linguagens se transformam, que isso é algo intrínseco à arte, mas não vejo isso como transformação ou adaptação de linguagem.

Parte I - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

Parte II - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

Parte III - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

Parte IV - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

Parte V - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

Parte VI - As Histórias em Quadrinhos, a Arte Seqüencial, as Graphic Novels e a Literatura de Imagem

MARCELO CAMPOS

Um comentário:

  1. Anônimo8:20 PM

    Olá Marcelo, tudo bom?

    Outro aspecto sobre o “enxugamento” dos recursos visuais nas HQs pode ser a redução da “capacidade comunicacional” desta linguagem. Uma vez que as HQs não têm os mesmos recursos do cinema (como a trilha sonora) ou de outras mídias, quão menos eficientes elas estariam se tornando para comunicar novas abordagens, assuntos e graus de profundidade? O quanto da uniformidade atual nas retratações visuais também não implica num achatamento da mensagem transmitida? É fato que a busca pelo estado de “suspensão da descrença” da audiência é essencial à função de entretenimento (devido a sua natureza necessariamente ilusória, enganadora) e, portanto, aos produtos que têm o entretenimento como foco único é necessário o uso da codificação nos padrões atuais de verossimilhança, mas, e aqueles que se propõe a outros objetivos? E os produtos que têm objetivos de entreter e também servir a algo mais? O sucesso de Dark Knight Returns para fora da platéia habitual das HQs não se deve muito ao uso até excessivo de onomatopéias e demais recursos das HQs, tornado a mensagem mais abrangente e até enriquecida com algumas camadas de leitura? Muitos autores fora das HQs demonstram aversão pelo estado de “suspensão da descrença” (desde Hamlet comentando sua peça dentro da peça, até Uma Turman “desenhando” no ar um quadrado em Pulp Ficion), insistindo em lembrar a platéia de que tudo é uma encenação. Este direcionamento além de, de certo modo, mais honesto não seria também um convite para a reflexão da platéia sobre a mensagem, recusando a redução da obra ao sensorial?

    Bom, já são muitas questões, para um comentário de post ;-D Obrigado por publicar um texto que nos dá a chance de refletir.

    Grande abraço.

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